quinta-feira, 5 de julho de 2018

Ferida do Oriente

Eu tenho uma ferida aberta 
do tamanho do Mar da Galiléia:
ela é um espelho de águas turvas,
tão profundas quanto o ponto 
mais baixo da Terra.

Eu tenho uma ferida ardendo 
qual meio-dia no Mar Morto -
ela queima ao sol veemente, 
junto às cinzas já sem nome  
que só em morte unem os povos.

Eu tenho uma ferida aberta 
que arrancou parte de mim -
como um povo sem território, 
como uma terra sem abrigo,
como uma religião sem deus…

[como uma bomba lançada 
sobre flores inúteis 
que perfumam com sangue 
os espinhos da perda…

como a poesia irregular
que esquece rima e métrica 
e confessa a sua falha
em vencer a verdade]

A minha ferida abriga
a minha dor e as alheias.
Pois as minhas raízes 
sangram em outro chão, 
mas já não têm pátria, 

e parte de mim se refugia
junto a um muro invisível 
onde a paz me bate à cara
- em tons de cinza - feito pedra 
de utopias sem valor.

Eu tenho uma ferida em mim
que se recusa em fechar:
como se acordos existissem
para serem violados
pela política estupradora da guerra.

A minha ferida, contudo...
assim como o Mar da Galiléia, 
é doce, e não salgada:
apesar de cortar-me o ao meio
[a Palestina de minha alma] 

é ela que se ocupa 
em manter-me vivo! -
como a fértil memória ardente
que cauteriza despedidas
no por-do-sol dum fim de tarde.

E ai! Pudera eu, poeta do absurdo,
abrigar a dor do mundo
nos meus versos transformados
em pátria sem fronteiras
a todo refugiado…

Ai! Pudera eu, 
colher a rosa e os espinhos
esmagados no caminho
que a farda desviou
dos pés de algum soldado...

A minha ferida já não mata:
[e o que pior seria?] 
jorra sangue em vida,
torturante e incontida,
Da minha ferida brota… o amor.

Um comentário:

  1. Este é o grande trunfo do "Espírito de Gravidade", nosso maior inimigo (o mesmo que acelera o encontro das bombas com o solo):
    "da falha da arte
    em vencer a verdade..."
    E não tem antídoto...
    Não tem verso clichê, ou com superpoderes capazes de estancar a ferida que sangra... Sangra aí. Sangue aqui. Somos todos refugiados de um mundo seco, tentando mentir a dura realidade da hipócrita vida em sociedade, pela arte...
    Deixemos o Espírito de Gravidade falar, afinal, ele tem razão!
    Mas a razão é só o que ele tem...

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